domingo, 26 de dezembro de 2010

A Peste Bubónica no Porto, Ricardo Jorge


"Ill.mo e Ex.mo Snr. 
Indo hoje em visita sanitaria á Fonte Taurina, deparou-se me ahi uma epidemia de certa gravidade de que os primeiros casos datam de ha cerca de tres semanas.
A molestia tem-se localizado particularmente nas casas n.º 88, 84 e 70, predios miseraveis e immundissimos. Tem atacadoprincipalmente individuos de procedencia hespanhola; apurei ao todo dez casos, caracterisados por estado febril, pertubações gastro intestinaes, e inguas dolorosas nos sovacos e virilhas. Estão actualmente doentes duas creanças de sete e onze annos e um adulto de trinta e tres annos. Dos outros sete casos, morreram quatro, todos adultos, sendo dois, homem e mulher, que succumbiram com poucos dias de intervallo.  A molestia, quando cura, tem durado uns dez ou onze dias; nos casos fataes, a morte sobreveio aos quatro ou cinco dias, sendo em dois d’elles inopinada. Como hoje para um dos enfermados fosse negada a entrada no hospital de Santo Antonio, por falta de formalidades legaes, especialmente devidas a elle ser da nação hespanhola, acabo de me dirigir ao director clinico do hospital, informando-o do succedido, para que os doentes d’esta especie possam ser internados sem difficuldade e sejam devidamente isolados. Dei ordem tambem para a desinfecção das casas contaminadas, e a este proposito informo a V. Ex.ª que na casa 84 a immundicie está acogulada por baixo do pavimento, sendo conveniente que se intime o proprietario a faze a devida beneficiação. A casa n.º 70 tem ao rez do chão uma casa de comidas. Eis o que se me offerece communicar a V. Ex.ª e dado que V. Ex.ª queira tomar algumas disposições que de mim dependam, estou para todos os effeitos ás ordens de V. Ex.ª - Deus Guarde a V. Ex.ª. Porto e repartição de Saude e Hygiene, 6 de Julho de 1899. -Ill.mo e Ex.mo Snr. Dr. Adriano Accacio de Moraes Carvalho, Dig.mo Commisario Geral de Policia do Porto. - O MedicoMunicipal, (a) Ricardo Jorge."  A Peste Bubónica no Porto, Ricardo Jorge, Deriva.

Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho, por Esquerda da Vírgula

A Esquerda da Vírgula já leu as Estranhas Criaturas.

Henrique Manuel Bento Fialho, HMBF a partir daqui, trouxe agora à luz Estranhas Criaturas que, na abertura do livro faz datar de 2009, e que veio a ser publicado pela Deriva no passado mês de Junho.
Às vezes, no início de livros, está a chave da cancela de portagem que dá acesso à estrada onde, ao fundo, se lê FIM. Aqui, todavia, fim tem o significado de finalidade, a de ajudar a revelar-nos aonde nos leva a estrada por onde vamos lendo.
Assim funciona a epígrafe de Estanhas Criaturas, retirada de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, da história 5, da parte de As Cidades Ocultas. Lendo-a, sabemos que Teodora, a cidade da história, foi sujeita, ao longo dos séculos, a invasões sucessivas de pragas de animais, que o homem foi vencendo, até conseguir a sua paz e a sua ordem, era o que todos os teadorenses já pensavam. Mas, da biblioteca da cidade, dos tomos de Buffon e de Lineu, acordaram de longa letargia toda a sorte de seres mitológicos malditos, que reocupam Teodora e a governam.

HMBF serve-se não só da epígrafe retirada desta história, como denunciadora de um tempo convulso, e talvez final, que sentimos ser o nosso (a que o tempo de outros irá suceder, acrescento eu), mas também como fornecedora de títulos aos textos, os nove nomes da citação, mais doze de figuras mitológicas malfazejas como aquelas, ou outras figuras perversas, retiradas da Literatura, Dr. Jekyll, Dr. Mabuse e Zaroff. Não é despicienda a função lateral que estas figuras têm no livro, a de reforçarem a sua unidade, já de si conseguida, quer pela disposição dos textos, quer pelo tom verberante que HMBF confere à escrita, um modo que, por si só, conseguiria a unidade, mesmo depois de baralhada toda a ordem do livro.
Tal como em As Cidades Invisíveis, sem mais nenhum contacto que o já dito de denúncia do nosso tempo, HMBF utiliza o texto curto, raramente maior do que uma página, que vemos hoje usado com democrática frequência e desbarato, ainda assim bem mais curtos, com o olho na clientela de leitura dita sem tempo disponível — nada de generalizações, ouço —, o que em Estranhas Criaturas não sucede, por ser um tamanho que assenta bem no carácter frequentemente alegórico, a que a figura ou o termo do título dos textos reforçam.

Ainda: alguns dos textos exigem esse tamanho por assumirem a forma de poema em prosa(1), que raramente requer proporções maiores. Temos, como exemplos claros de poemas em prosa, Água Benta, Aguarela, Basilisco (uma bela alegoria), Casas, Esfinge, Hidras, Morte, Poemas, Profetas, Sátiros, Vento e Zaroff, o último texto do livro, que avulta como final e como poema em si. Haverá mais poemas em prosa, porém foram estes que se me salientaram com maior clareza.
A linguagem poética usada não exige nenhum hermeneuta, é, pelo contrário, imediatamente digerida, mesmo quando, aqui e além, se transmuda em necessidade de significação e entra no campo sensorial da escrita e da leitura.
São ao todo quarenta e oito textos, em que sobressai a revolta social, a crítica mordaz, a rejeição, a irrisão da figura de poetas, cujo exemplo mais refinado é, desde logo, a Introdução ao livro, escrita pelo próprio, e presente nos textos Ophiuchuos, Quíron, Unicórnio, Vampiro, não sei se saltei algum texto. Digo que o barrete servirá a muitos, só que aposto 1 contra 1.000 que ninguém o vai pôr, isto é coisa que HMBF sabia antes de a escrever, e mesmo assim não só a escreveu, como a publicou, digo-o para melhor exemplificar o desassombro de todo este livro. Não é um livro que faça bem ao fígado, mas aos olhos garanto que faz. E não esqueça, para o fígado há o Cholagutt. Ataque logo, na primeira toma, com trinta gotas, o dobro do que eles mandam. Remédio santo.

(1) Não poucas vezes se comete a sinédoque de substituir poema em prosa por prosa poética. A prosa poética é a que define o poema em prosa, mas também que pode estar presente em peças de prosa tout court, ficção, crónicas, etc

Bailias, Catarina Nunes de Almeida

[ilustração de Sandra Filipe ]


Irei eu em todas as minhas mãos
pégasos e ventanias
o corpo preso por um frio gentil
o corpo a tilintar de sonhos.

Serei eu o que ele for
na cavalgada.

 Catarina Nunes de Almeida, in Bailias
 

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Pulsar e Cassiopeia na Deriva [parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras do Porto]

    

 As colecções Pulsar e Cassiopeia, resultantes de uma parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras do Porto,  dão a conhecer  estudos muito relevantes no âmbito da Teoria da Literatura.

Na  Pulsar, foram já editados Jean ‑Pierre Sarrazac (com A Invenção da Teatralidade seguido de Brecht em Processo O Jogo dos Possíveis), Pascal Quignard (com Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos). Muito em breve chegará, às livrarias, a Aula Inaugural no Collège de France de Antoine CompagnonLiteratura: Por Que Fazer?).  Um ensaio essencial que problematiza o espaço e o valor da literatura hoje.

Na Cassiopeia, que já acolheu  um inédito de Pedro Eiras, intitulado Tentações: Ensaio sobre Sade e Raul Brandão, teremos brevemente um ensaio de Gonçalo Vilas-Boas sobre Kafka.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Alfabeto Adiado, José Ricardo Nunes

Alfabeto Adiado, José Ricardo Nunes


Quem seria eu, na voragem dos rostos?

Era só uma palavra o que mendigava às pessoas. Palavra atrás de palavra. Até nada sobrar desse alfabeto adiado.

Passados anos percebi. Eu, sentado a escrever. Indigente.

A mobilização global seguido de O Estado-Guerra de Santiago López-Petit

"Só a rejeição total da realidade no-la pode mostrar na sua verdade. Só a rejeição total do mundo nos diz a verdade do mundo. Mas esse gesto radical de rejeição já não é o gesto moderno que, depois da destruição anunciava e preparava um novo começo. Não há começo absoluto porque a «tabula rasa» não nos deixa diante de nenhuma verdade absoluta. A rejeição total da realidade apenas nos oferece «uma» verdade da realidade. Esta é a nossa verdade." Santiago López-Petit in A Mobilização Global

sábado, 6 de março de 2010

Chega de Fado | Paulo Kellermen

Chega de Fado, o quarto volume de contos de Paulo Kellerman editado pela Deriva, representa a consolidação do percurso discreto mas sólido, e em diversos aspectos ímpar, que este escritor tem vindo a desenvolver. Explorando ao máximo as potencialidades da narrativa breve e marcado por uma construção original, Chega de Fado é um livro habitado por vinte personagens que, unidas em duplas, compõem os dez “capítulos” que o formam; em cada um destes “capítulos” (verdadeiros esquissos de potenciais romances), as estórias vão-se sucedendo sob diversas formas narrativas (contos, micro-narrativas, diálogos dramáticos) e evoluindo ou desevoluindo até à inevitável, e por vezes inconsequente, confrontação final.
Desta multiplicidade de estórias, formatos e vozes nasce uma radiografia desapaixonada e incisiva do quotidiano, um retrato cru dos gestos e dos silêncios, das banalidades e das frustrações, das esperanças e dos secretismos que atravessam as relações e caracterizam a precariedade e imprevisibilidade dos comportamentos e sentimentos de todos nós.
Numa escrita elegante e sensível, Paulo Kellerman compõe ambientes urbanos e impessoais perpassados pela omnipresença da incomunicação e da melancolia, ambientes sombrios povoados por seres ávidos de intimidade e compreensão mas incapazes de alcançar uma qualquer forma de felicidade, mesmo que transitória. Ambientes saturados de pessimismo e desânimo, de apatia e solidão, de impotência, de desconforto existencial; até que alguém se insurge e grita chega de repetição e passividade e monotonia, chega de lamúria; chega de fado.