sábado, 6 de março de 2010

Chega de Fado | Paulo Kellermen

Chega de Fado, o quarto volume de contos de Paulo Kellerman editado pela Deriva, representa a consolidação do percurso discreto mas sólido, e em diversos aspectos ímpar, que este escritor tem vindo a desenvolver. Explorando ao máximo as potencialidades da narrativa breve e marcado por uma construção original, Chega de Fado é um livro habitado por vinte personagens que, unidas em duplas, compõem os dez “capítulos” que o formam; em cada um destes “capítulos” (verdadeiros esquissos de potenciais romances), as estórias vão-se sucedendo sob diversas formas narrativas (contos, micro-narrativas, diálogos dramáticos) e evoluindo ou desevoluindo até à inevitável, e por vezes inconsequente, confrontação final.
Desta multiplicidade de estórias, formatos e vozes nasce uma radiografia desapaixonada e incisiva do quotidiano, um retrato cru dos gestos e dos silêncios, das banalidades e das frustrações, das esperanças e dos secretismos que atravessam as relações e caracterizam a precariedade e imprevisibilidade dos comportamentos e sentimentos de todos nós.
Numa escrita elegante e sensível, Paulo Kellerman compõe ambientes urbanos e impessoais perpassados pela omnipresença da incomunicação e da melancolia, ambientes sombrios povoados por seres ávidos de intimidade e compreensão mas incapazes de alcançar uma qualquer forma de felicidade, mesmo que transitória. Ambientes saturados de pessimismo e desânimo, de apatia e solidão, de impotência, de desconforto existencial; até que alguém se insurge e grita chega de repetição e passividade e monotonia, chega de lamúria; chega de fado.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A Inexistência de Eva | Filipa Leal



Era uma mulher que estava dentro de uma sala muito branca.

Ouviu: – Não fujas. Não esqueças.
Era uma mulher lívida de medo de não conseguir esquecer.

*

À volta da sala, havia um pomar redondo que a envolvia de maçãs
avermelhadas, difusas. Ela estava lívida e suja, entre a castidade
e o remorso.
Ouviu: – Esquece o arrependimento. Fica.

 
Filipa Leal, A Inexistência de Eva

Arrastar Tinta | Nuno Barros / Pedro Eiras



«Na sua constante reificação da intencionalidade, estamos perante um livro sobre a indeterminação, sobre a hesitação, sobre a dúvida, em suma, sobre a cegueira do gesto que arrasta a tinta, que pinta, que escreve. Como se dirigir a mente para o mundo (a intenção) se revelasse em permanente confronto com o acaso que parece governar cada traço, cada inscrição que a arte deixa na pele do mundo. Como se a hipótese de clareza procurada nas águas profundas da mente se confrontasse sempre com o escuro, esse escuro que ecoa infinitamente na opacidade da arte: ''Fecha-se a tinta sobre ti como uma porta se fecha. Como se fecha sobre uma parede de cimento e tijolos ou pedra, ou água. Onde estava, agora mesmo a clarabóia, onde estava o poço?'' Luís Quintais sobre Arrastar Tinta (in revista Relâmpago nº24).

O Problema de Ser Norte | Filipa Leal

Traindo o poema

Juro: eu tinha prometido não escrever
este poema. Não gosto de supermercados
nem de poetas de supermercado, mas hoje enchi
a casa de manteiga e não pude evitar uma sensação
de metáfora, uma ironia a escorregar-me nos dedos
como anúncio de contemporaneidade. Juro: eu não preciso
de tantas embalagens, nem preciso deste poema,
mas há tantos dias que não posso tomar o pequeno-almoço
na minha casa sem manteiga, sem poema, que hoje enchi-me
de coragem para tudo isto.
E juro: apesar da traição, sinto-me hoje mais
contemporânea
do que nunca.

Filipa Leal, in O Problema de Ser Norte

Mágoa das Pedras | Joaquim Castro Caldas




um apocalipse

agora é que tinha graça encher campos de selva de soldados e  derrubá-los com os braços, pegar-lhes pelos capacetes e pô-los  nos sítios do globo que nos apetecesse, agarrar no ar obuses e  mísseis e espetá-los una contra os outros, empurrar tanques por  desfladeiros, desligar centrais nucleares e bombas e amontoar dinheiro para o derreter e queimar, cobrir o jogo de lágrimas  verdadeiras e conta gotas nos olhos dos homenzinhos armados  em grandes, os que chamam melancolia ao amor e nostalgia  à humildade, os que monopolizam e manipulam a história,  informatizam a eternidade, esquecem-nos ou esquecem-se  Joaquim Castro Caldas, Mágoa das Pedras

 Sobre Mágoa das Pedras, ler aqui


Catálogo de Venenos | Marilar Aleixandre


A Cidade Líquida e Outras Texturas | Filipa Leal


A Metamorfose das Plantas dos Pés | Catarina Nunes de Almeida


Da Sombra que Somos | Maria Sofia Magalhães


Meridionais | João Pedro Mésseder


Abrasivas | João Pedro Mésseder


Versos Olímpicos | José Ricardo Nunes